Estatuto da Cidade e Habitação no Brasil
Passados 13 anos da promulgação da Constituição, entra em vigor a Lei n 10.257, que regulamenta a política urbana no país. Conhecida como Estatuto da Cidade, a legislação cria uma nova concepção de município e os mecanismos necessários para colocá-la em prática. Entre outras coisas, o estatuto estabelece que todas as cidades com mais de 20 mil habitantes aprovem, até 2006, um plano diretor para organizar o crescimento do município e prepará-lo para o futuro. Embora a exigência de um plano diretor estivesse prevista na Constituição, ela não era cumprida com rigor. Segundo a mais recente Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic), do IBGE, em 2001 menos de 40% das cidades com mais de 20 mil habitantes já haviam aprovado um plano diretor. Entre os municípios com mais de 500 mil moradores, porém, a adesão ao plano era total.
Outro ponto importante do estatuto é a definição da função social da propriedade. Imóveis e terrenos vazios em regiões valorizadas da cidade, mantidos para especulação imobiliária, são exemplos de propriedades que não cumprem função social. Para evitar essa situação, o estatuto prevê a cobrança do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) progressivo conforme o tempo de desocupação do imóvel, para estimular os proprietários a cumprir a função social. Caso o abandono do terreno ou imóvel persista, a prefeitura poderá recorrer à desapropriação.
Para disciplinar a ocupação do espaço urbano, o estatuto tem recursos como o da concessão onerosa do direito de construir. Trata-se da cobrança de uma taxa pela exploração imobiliária da parte mais valorizada das cidades segundo os critérios do município, que define o limite permitido para as construções de acordo com a metragem dos terrenos. Caso os empreendedores queiram ultrapassar esse limite – construindo prédios altos em lotes pequenos para aumentar seus ganhos, por exemplo –, são taxados. O dinheiro arrecadado com o imposto pode ser investido em bairros sem infra-estrutura.
Exclusão territorial – Nem sempre o planejamento é eficaz na organização das cidades. Há casos em que a legislação urbana dificulta a solução dos problemas – ou mesmo cria outros problemas – porque há um conflito entre a realidade e a ordem urbanística proposta no planejamento e nas leis municipais.
No Brasil, o zoneamento define padrões de ocupação do solo com base na lógica de investimento de mercado, que atende às classes média e a alta. A produção de imóveis para essas classes, porém, representa uma pequena parcela da demanda por espaço urbano e novas construções. O planejamento urbano provoca, assim, escassez de locais para construções populares, que são empurradas para as áreas da cidade desvalorizadas e com pouco ou nenhum acesso a saneamento, transporte público, saúde, educação e lazer. Na visão de especialistas, essa periferização da população de baixa renda – conhecida como exclusão territorial – é outro fator gerador de violência urbana. Pesquisa da urbanista Raquel Rolnik constatou que entre os 28 municípios com a pior situação de exclusão territorial do estado de São Paulo, 25 possuem os piores indicadores de violência. Já entre as 21 cidades mais bem situadas em termos de localização e distribuição dos habitantes, 14 estão entre as menos violentas.
Vazios urbanos – A produção imobiliária para as classes média e alta não consegue ocupar todo o espaço destinado a elas. Surgem então vazios urbanos em regiões valorizadas. Nos últimos anos, eles são criados também por causa da desocupação dos bairros centrais, já que residir na parte mais urbanizada da cidade custa caro para a maioria da população. Com o desemprego e a queda no poder aquisitivo das últimas décadas, moradores do centro de São Paulo, por exemplo, começaram a ter dificuldade para pagar o aluguel ou comprar um imóvel nesses locais e tiveram de mudar-se. Na comparação entre os censos de 1991 e 2000, verifica-se que a região central de São Paulo perdeu 20% dos moradores no período, enquanto o extremo sul da cidade, formado por bairros de infra-estrutura precária, ganhou 25% mais habitantes.
Habitação
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra Domicílios (Pnad) de 2002, 73% dos domicílios são próprios, 15%,alugados, 10%, emprestados e o restante corresponde a domicílios ocupados em outras condições – como os invadidos. No entanto, o fato de um domicílio ser próprio não significa que ele seja adequado. Uma significativa parte da população vive em domicílios precários, sem infra-estrutura e distantes de serviços básicos, como os de saúde, educação e transporte, o que contribui para baixar o nível de qualidade de vida.
Déficit habitacional – A vertiginosa taxa de urbanização do Brasil, que passou de 36% para 81% em apenas cinco décadas, fez surgir grande carência de moradias, fenômeno também chamado de déficit habitacional. Estatísticas do IBGE divulgadas em 2003 estimam que esse déficit seja de 6,6 milhões em todo o país. Só na cidade de São Paulo há carência de 380 mil moradias. O Ministério das Cidades, em publicação lançada em dezembro de 2004, calcula que faltem no país 7,2 milhões de habitações, 1,7 milhão delas nas áreas rurais.
Paradoxalmente ao problema do déficit habitacional, estima-se que existam 4,6 milhões de imóveis vagos em todo o país, segundo dados do IBGE. Em 2003, o governo federal discute a disponibilização desses imóveis para a população mais atingida pelo déficit habitacional – a que tem renda de até cinco salários mínimos, de acordo com Ermíria Maricato, secretária executiva do Ministério das Cidades. A maior parte das prefeituras de regiões metropolitanas tem programas de reforma de imóveis degradados nos centros urbanos, mas em quantidade ainda muito pequena para atender à demanda.
Favelas – Na definição usada pelo IBGE, favela é um conjunto de no mínimo 51 unidades habitacionais que ocupam ou ocupavam, até período recente, um terreno de propriedade alheia (pública ou particular). Outra característica levada em conta pelo instituto é a falta de serviços públicos essenciais. Entre os censos de 1991 e 2000, do IBGE, aumenta em 25% o número de favelas nas grandes cidades brasileiras, que chegam a quase 4 mil.
Já na Munic 2001, pesquisa sobre a situação dos municípios brasileiros realizada pelo IBGE, 1,3 mil prefeituras declaram ter favelas ou outro tipo de moradia precária. Embora nem todos os municípios possuam registros oficiais da existência desses domicílios, a soma de favelas cadastradas passa de 16 mil. Juntas, elas têm mais de 2,3 milhões de moradias. O critério para definir favela, nesse caso, não é o do IBGE, mas o de cada município, o que explica a discrepância de números com os apurados pelo Censo de 2000.
Cortiços – Normalmente situados no centro das cidades, os cortiços são moradias que abrigam várias famílias. Pesquisa divulgada em 2002 pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano de São Paulo (CDHU) mostra que a localização central é o que mais atrai os moradores para esse tipo de habitação, permitindo que eles possam deslocar-se a pé até o local de trabalho. Os baixos aluguéis e a informalidade dos contratos, que não exigem comprovação de renda nem fiador, também pesam muito na escolha. Em troca dessas facilidades, os moradores vivem em condições precárias, preparando suas refeições dentro dos quartos, dividindo o uso de sanitário com os vizinhos ou morando em cômodos sem iluminação nem ventilação. A Munic 2001 constatou que os cortiços se concentram nas maiores cidades: 90% deles estão nos municípios com mais de 100 mil habitantes. O número de cortiços cadastrados no país passa de 33 mil.
Ocupação do solo – Sem condições de arcar com o alto custo das habitações regulares, grande parte da população de baixo poder aquisitivo se vê excluída do mercado imobiliário legal e busca meios alternativos de moradia. Mais de 80% dos domicílios construídos no Brasil entre 1995 e 1999 foram erguidos por famílias pobres e, na maioria das vezes, em loteamentos irregulares ou clandestinos na periferia das grandes cidades e regiões metropolitanas. Esses dados foram apresentados na Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos (Habitat+5), realizada em 2001.
Loteamentos irregulares e clandestinos – Os loteamentos irregulares cumprem parcialmente as normas de ocupação do solo, enquanto os clandestinos as desrespeitam completamente. Ocupados por residências e estabelecimentos que não têm existência reconhecida pelo poder público, esses terrenos não possuem valor no mercado imobiliário, sendo a alternativa de compra de imóvel acessível para a população de baixa renda. Além de não contarem com infra-estrutura mínima, os loteamentos clandestinos ocorrem em áreas desfavoráveis à ocupação, em terrenos com solos frágeis, sujeitos a erosão e desmoronamento. Sua implantação diminui as áreas verdes das cidades e compromete as condições dos mananciais de água que as abastecem.
Segundo a Munic 2001, quase 40% dos municípios brasileiros tinham loteamentos irregulares em 2001. Já a ocorrência de terrenos clandestinos era de 25%. Quanto maior a cidade, maior é a presença de assentamentos em condição de irregularidade ou clandestinidade. Nas regiões metropolitanas, onde o crescimento populacional é mais difícil de disciplinar, os loteamentos nessas condições são muito comuns. No Recife (PE), por exemplo, a região dos mangues é ocupada de forma irregular; na Baixada Santista (SP) o mesmo ocorre não só nas áreas de mangue, mas também nas encostas da Serra do Mar. Na capital paulista, a ocupação irregular avança em áreas de proteção aos mananciais, que são os terrenos próximos de represas e reservatórios, fontes de água para abastecimento da cidade. Dessa forma, o lixo e o esgoto produzidos por centenas de milhares de moradores são despejados diretamente em córregos e rios, o que ameaça a qualidade da água.
Soluções Urbanísticas
Há várias iniciativas públicas que obtiveram êxito no combate aos problemas decorrentes da urbanização de risco usadas na elaboração do Estatuto da Cidade.
Curitiba – A concessão onerosa, por exemplo, foi implementada em Curitiba em 1990, por meio da lei que instituía o "solo criado". Na época foram instituídas regiões propícias ao adensamento populacional, por meio do aumento do aproveitamento construtivo dos terrenos. De acordo com a prefeitura, 720 empreendimentos imobiliários usaram o instrumento em 11 anos de existência. A receita gerada – em torno de 18 milhões de reais – foi depositada no Fundo Municipal de Habitação e utilizada na compra de lotes e na regularização fundiária.
Natal – A prefeitura de Natal adotou o mesmo procedimento em seu plano diretor, aprovado em agosto de 1994. O documento previa também a transferência do potencial construtivo. O potencial construtivo das áreas de proteção ambiental, portanto impossíveis de serem adensadas, poderia ser usado pelos proprietários do terreno em outras partes da cidade, de acordo com a autorização da prefeitura. O potencial construtivo é medido de acordo com a metragem do terreno, por meio do coeficiente de aproveitamento (CA). Terrenos dotados, por lei municipal, de CA 1 permitem edificações com área construída de uma vez a metragem do terreno.
Recife e Diadema – As Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) são outro instrumento do Estatuto da Cidade usado desde a década de 1980. Todo município tem leis para definir o uso e o padrão de ocupação dos terrenos que impedem a regularização de bairros clandestinos. Por essa razão, foram criadas as ZEIS, que seguem padrões adequados para esses bairros. A primeira experiência do tipo foi realizada em Recife. Em 1983, a lei de uso e ocupação do solo reconhece 27 ZEIS, dentro de um universo de 200 favelas. Em 1987, a lei torna-se mais abrangente e incorpora mais áreas. Um dos melhores exemplos de implementação das ZEIS está em Diadema, cidade que no decorrer da história destinou as melhores regiões urbanizadas para as indústrias. Na década de 1980, o município exibia um dos piores casos de exclusão territorial: um terço da população vivia em 3,5% da superfície da cidade, em favelas sem nenhuma infra-estrutura. Por meio de negociações políticas na Câmara Municipal e na prefeitura, a cidade começou a implantar as Áreas de Especial Interesse Social (AEIS), divididas em dois tipos, um para terrenos vazios que poderiam abrigar habitação popular e outros para favelas consolidadas que necessitavam de urbanização. A simples adoção do instrumento dobrou o estoque de terrenos para a população de baixa renda. Nas áreas vazias, o setor imobiliário pôde desenvolver um mercado popular de comercialização de terrenos.
São José do Rio Preto – Para enfrentar a exclusão territorial, a cidade paulista de São José do Rio Preto cria os minidistritos industriais e de serviços, a partir de 1986, com o objetivo de estimular os micro e pequenos empreendimentos articulados ao desenvolvimento urbano, distribuindo a oferta de emprego. Para isso, a prefeitura integra o programa habitacional com o de geração de emprego e renda. Assim, cada novo loteamento da prefeitura deve conter uma área reservada para uso industrial. A oferta de terrenos vazios permite o assentamento de cerca de 55 mil pessoas, 15% da população. Com os minidistritos, cai a praticamente zero o número de moradores de favelas, que na década de 1980 chegava a cerca de 500 famílias. Ao determinar a localização dos novos loteamentos, estimula-se a ocupação dessas regiões. Por meio da lei de zoneamento, o município determinou que 5% de todos os novos loteamentos fossem doados para o poder público, para formar um banco de terras. Com esses terrenos, a prefeitura fazia permutas com outros, mais periféricos e baratos porém não muito distantes da cidade. Nesses locais eram criados os minidistritos, cujos terrenos são vendidos em 35 prestações.
Com os minidistritos, a prefeitura estima que foram criados cerca de 34 mil empregos, um quarto diretos e o restante indiretos. A mudança refletiu na arrecadação de IPTU e na fiscalização do município. Pequenas e microempresas deixaram os fundos de quintal, onde funcionavam de forma irregular, e instalaram-se nos minidistritos.
www.megatimes.com.br
www.klimanaturali.org
www.geografiatotal.com.br